quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Entre Um Apocalipse e Outro

AZATHOTH.'., DRAVEN e NEITH WAREscrito de 15 de fevereiro a 7 de abril de 2011



PRÓLOGO:
por DRAVEN

Caminhando apenas com a companhia um do outro, dois jovens de mãos dadas observavam a paisagem tristemente. A cena era de um tom melancólico, meio surreal, como Adão e Eva caminhando para fora de seu paraíso perdido.

“E agora, o que faremos?” O silêncio foi quebrado pela menina, que falou com uma voz quase sussurrada, meio rouca.

“Eu tenho um plano,” foi a resposta do menino. “Pode não dar certo, mas temos que continuar com ele custe o que custar. Você está comigo?”

A menina o encarou com seus olhos brilhantes, em lágrimas, e acenou um sim com a cabeça. Ela confiava nele plenamente.

Os dois se abraçaram, como se fosse uma despedida, e voltaram para observar o horizonte pálido. Aquela fora uma cena perfeita, antes de uma gigantesca luz surgir no horizonte, parecendo cobrir toda a terra.

“Vamos ficar juntos para sempre, não é?”, perguntou a menina.

“Sim, para sempre”, respondeu o menino.



Para sempre nunca pareceu um tempo tão curto antes.





ÍNICIO



[Azathoth .'.]

O LUAR ERA ESTRANHO. O halo em volta da lua tinha um tom muito escarlate, e a própria lua era arroxeada, púrpura, malva, um desses tons que poucos sabem definir com precisão. Várias estrelas caíam pelo céu noturno, e provavelmente atingiriam uma cidade no topo de uma colina... se a cena não estivesse congelada, porque era uma pintura emoldurada na parede daquela casa em quase ruínas.

"Não sei o que você está fazendo aqui," a voz da moça soou na semiescuridão. O rapaz ficou um pouco irritado, porque já havia explicado mil vezes, mas se deu ao trabalho de repetir: "Não existe mais isso de sua casa, minha casa, até porque você achou essa casa, tanto quanto eu. Pode relaxar, que eu não vou tomar o seu... território; só quero essas coisas que você não usa, os quadros, os livros... e não posso levar tudo de vez, escolhi esse quadro dessa vez."

"Não precisa se irritar," respondeu a voz rouca e feminina, cuja dona foi saindo das sombras mais densas. "Sabe que não lembro direito das coisas. E motivações são uma coisa especialmente difícil de se manter na memória... para mim, pelo menos, funciona assim." Mais uma vez o rapaz se surpreendeu com as formas da moça: ao contrário dela, mas de modo similar, a doença lhe fazia esquecer, com muita facilidade, a fisionomia das pessoas.

Das pessoas, não de animais nem objetos. Era por isso que ele catava e colecionava objetos, quase como uma gralha roubava coisas brilhantes; e haviam muitas coisas brilhantes nas ruínas do mundo. Diziam os velhos do lugar onde ele vivia, um dia o sol brilhou forte demais, e haviam máquinas que pensavam por todo o mundo; o brilho forte do sol apagou a memória de todas as máquinas (as máquinas tinham memória, naquela época! tão estranho) e fez assim o mundo ruir.

A ironia era que a sujeira daqueles primeiros dias no escuro e na barbárie trouxeram uma doença que mexia com a memória; e quase todos estavam infectados. Podia ser então que a história dos mais velhos fosse uma mentira estranha de seus cérebros afetados... e isto seria mais irônico ainda.






[Draven]
Apesar da memória que lhe faltava, no entanto, uma marca sempre ficaria em sua mente. Nenhuma força do mundo poderia apagar essa ferida. Alguns diziam que 'a doença', como chamavam essa deterioração progressiva da memória – e não precisava de outro nome, porque era o único mal que realmente importava agora – era a punição desse grande crime.

Canibalismo era seu crime. Era o crime de todos os humanos. E mesmo que ele próprio nunca tivesse experimentado carne humana, tal qual sua companheira – qual era mesmo o nome dela? – a doença ainda o consumiria. Estava no seu sangue, no seu corpo, uma sina herdada dos seus pais e seus avôs. Os mais antigos falavam coisas que ele não entendia: algo como “genes”, “deneá”, “mito-cordas”. Falavam que a fome levou à doença, e a um desejo pavoroso que muitos ainda sentiam. O grande crime, e o único grande crime.

E ele sabia que não era uma vítima, apenas. Era culpado. Já havia experimentado o gosto de carne, a terrível sensação de matar e devorar seus iguais.

"Foi há anos, em um dia frio, mais frio ainda que os dias normais, quando cheguei em casa... Não! Melhor não lembrar disso! Procure esquecer! Procure esquecer! Eu não me lembro nem da face deles, por que ainda lembro do seu gosto?!?”

O rapaz fecha os olhos, tentando soterrar uma das últimas memórias vivas do seu passado, e quando abre vê sua companheira no mesmo estado quase de transe em que ele se encontrava, provavelmente perdida em algum devaneio absurdo de sua mente.

Ela resmunga algo que ele não entende e sai para o que chama de 'seu quarto'. Pelo menos agora ele está livre para pegar as suas coisas... Suas pequenas coisas brilhantes do mundo esquecido...

Mas algo chama sua atenção. Algo ainda mais brilhante. Algo terrível, sedutoramente perigoso...





[Neith]
Aury, sim, era este o nome da garota e ela sabia, mas como isso era possível? Ela carregava em seu pescoço um colar dourado com uma plaquinha onde estava escrito Aury, se este era ou não seu nome real ninguém nunca saberia, mas ela gostava de fingir que sabia, e que era este.

Sentou-se na cama, o lugar era tão sujo e decadente, fazia o que podia para mantê-lo agradável, sentiu-se incomodada e se levantou parando em frente à metade de um espelho oval que havia encontrado numa de suas saídas, levantou um pouco a blusa fina e suja que usava, do lado esquerdo bem próximo do quadril havia uma pequena ferida que vinha aumentando a cada dia, era dolorida e feia. Aury sentiu um pouco de medo ao notar como havia aumentado desde a ultima vez.

Abaixou novamente a blusa, como se com isso fosse capaz de fazer o ferimento sumir, ficou irritada, já nem se lembrava porque, quebrou algumas coisas no quarto e saiu ventando pela porta arrastando os poucos móveis que encontrava pela frente, gritava de raiva e algumas lagrimas teimavam em querer descer por seu rosto , mas ela seguraria, afinal não havia motivos para desperdícios.

Passou pelo rapaz quase o derrubando contra algo que ele olhava, correu pela rua abandonada por um bom tempo até chegar a um pequeno terreno onde eram jogados diariamente os destroços de algumas máquinas quebradas, sentou-se e ali ficou por dois dias, sem dormir ou comer, era como se estivesse esperando algo ou alguém que nunca chegava.

No terceiro dia Aury levantou-se e caminhou de volta para casa como se estivesse em transe, deitou-se na cama e dormiu por mais três dias.






[Azathoth .'.]
O rapaz tateou na obscuridade, de onde saía o brilho. Era um livro.

Nunca vira um livro de capa tão reluzente, ou melhor, a capa reluzia naquela meia-luz por conta das escamas da encadernação. Couro de cobra, ou de algum outro réptil que o rapaz desconhecia. E livro era uma mercadoria preciosa naqueles dias – os mais velhos pagavam bem por um exemplar, rendia boas trocas, fosse ele qual for, não importando o conteúdo.

E ele pensou que havia levado todos os livros daquela casa. A menina – se chamava Aury? Bolas, não lembrava o próprio nome, que dirá o da menina, que não sabia ler, ou pelo menos dava essa impressão. Eles dois haviam sido criado juntos, até que ela passou por um rito de passagem estranho entre as mulheres, saiu da vila e foi viver na casa arruinada. O rito se chamava 'menarca' e ele não sabia o que significava, as mulheres guardavam vários segredos, e aquela não era exceção.

Até porque era uma mulher, não uma menina. Já deixara de ser garota há muito tempo, e ele começava a reparar nas formas insinuantes que a roupa esfarrapada teimava em ocultar. Ficou num leve devaneio imaginando essas formas, depois que notou que a menina havia entrado num dos quartos vazios, devaneio interrompido por essas mesmas formas correndo, e depois só o bater da porta.

Bom, ela costumava fazer dessas coisas, não adiantava correr atrás dela, até porque não conseguiria alcançar. Já estava tarde e o garoto decidiu dormir ali mesmo; entrou num dos quartos mais próximos e deitou-se na cama desarrumada. Perto havia um espelho oval, mas não era algo reluzente e sim fosco, de modo que o rapaz deu muito mais atenção ao livro, que queria ler antes que, no dia seguinte ou no máximo quando a fome apertasse, tivesse de vendê-lo.

Ajeitou-se nos travesseiros e almofadas que catou do chão e abriu o tomo. Numa página perto da metade do livro, exibia-se uma figura luxuriosa, aparentemente desenhada à mão sabe-se lá através de que método e ferramentas... uma figura luxuriosa de uma mulher seminua, tatuada (ou pintada?), braços abertos numa cerimônia em que era rodeada por vários homens de manto, que pareciam dançar ao redor de um altar vazio.

O choque do rapaz aumentou quando ele percebeu que os adornos no corpo da mulher não eram tatuagens, eram manchas de sangue. E a única coisa que a mulher da estampa vestia não era uma saia branca rodada, e sim vários crânios enfileirados... aquela cena ao mesmo tempo o repeliu e excitou. Fechou o livro com força, respirando fundo, e voltou a abrí-lo, desta vez no início. Não era escrito à mão. Na introdução havia o título, 'Kleshayana, o Veículo da Corrupção – Tradução de Anna...' e o sobrenome estava borrado.

Que diabos era aquele livro? Não conseguia parar de ler.





[Draven]
Aury, enquanto voltava para casa em seu transe, não pôde perceber a silhueta que a observava. Um manto esfarrapado, e naturalmente furtivo, seguia a moça pelas sombras de carros destruídos e máquinas antigas consumidas pela ferrugem...

***

Quando Aury chegou, o rapaz ainda estava imerso em sua leitura. Ele mal a notou se dirigindo ao seu quarto, tão concentrado naquele livro diferente de tudo o que já vira.

O 'Veículo da Corrupção', ou o 'Caminho do Veneno', aos poucos modificava seus medos para algo diferente, que ele não sabia explicar, mas que lhe deixava estimulado a provar... Indiferente ao cenário que o cercava, ele saciava sua fome com o conhecimento perdido, e matava sua sede com uma nova visão. A cada segundo que passava lendo, ele entendia um pouco mais sua vida e o que teria que fazer dali em diante, e esse pensamento indescritível remoendo em sua mente lhe deixava com água na boca e um estranho sorriso de escárnio pela humanidade caída.

***

Aury acordou dois dias depois, e a primeira coisa que encontrou foi Dan caído com um livro em seu colo, sangrando pelas narinas. Se perguntando o que poderia ter acontecido, se dirigiu a seu amigo, sem evitar pensar que nunca disse a Dan que lembrava seu nome perfeitamente.

De fato, a moça não sabia direito por que fazia questão de evitar revelar suas memórias. Tinha tantas que às vezes pensava que não era vítima da doença que a todos consumia, mas não sabia exatamente o que deveria ou não lembrar para ser considerada “normal”.

Normal... Era uma palavra tão estranha nesses dias... O que era ser normal? Ela seria normal caso não tivesse a doença, quando todos a tinham?

Ela se sentia tão diferente, no entanto. Talvez fosse algum instinto de sobrevivência, não se revelar, porque todos sabem que as pessoas não aceitam o que não é como elas. Mentir era uma questão de sobrevivência, e ela já não poderia abandonar o hábito de parecer menos inteligente e lúcida do que realmente era.

E ainda, havia algo muito estranho. Ela deveria estar morrendo. Sabia dos antigos livros de medicina que o ferimento havia “inflamado” e estava “necrosando”, mas quando acordou já não sentia mais tanta dor como antes, e a ferida parecia estar curando. E isso seria impossível sem os remédios do velho mundo.

No entanto, Aury não tinha tempo agora para pensar nesses detalhes. Estava preocupada com Dan, ali desmaiado, febril, sangrando pelas narinas. Pelo jeito, ele não havia comido ou dormido por muito tempo, talvez algumas noites.

Correu pegar um pouco da tão preciosa e escassa água que possuíam, encharcando um pano, e molhando a testa de Dan. Ficou ali com ele, às vezes atacada pelo desespero de que ele morresse, e deixasse ela sozinha. Mesmo que gostasse do isolamento, o convívio de ambos aliviava todo o medo que ela tinha da solidão e das outras pessoas. Naquele terrível momento, ela percebeu finalmente o quanto precisava dele, o quanto gostava de sua companhia, o que realmente sentia pelo rapaz...

... e então Dan abriu os olhos. Olhos que refletiam a lua e o rosto de Aury em sua íris negra. Olhos que enxergavam um novo mundo, um novo começo...

Olhos que não pertenciam mais ao Dan que Aury conheceu.






[Neith]
Aury ainda estava absorvida por aquele momento quando foram tirados daquela sensação de paz, um estrondo muito forte ecoou por toda a casa, outro seguiu-se quase que imediatamente, ouvia-se gritos ao longe e risadas malignas, Dan levantou-se correndo limpando o sangue do nariz com as costas da mão, foi até a janela e voltou imediatamente seu olhar em direção à Aury que ainda sentada na cama tentava entender o que estava acontecendo, Dan não teve tempo de abrir a boca e um tanque de guerra atravessou o quarto levando metade da casa junto, a metade em que Aury estava.

Dan fechou os olhos e apertou com força, ao abrir deu de cara com Aury olhando para ele sentada ao seu lado na cama, sem dizer uma só palavra, pegou a mochila, enfiou o livro dentro e agarrando a mão de Aury, começou a correr para fora da casa, o primeiro estrondo fez tudo tremer, se seguraram no batente e continuaram atravessando a sala, o segundo estrondo, que foi mais forte e parecia estar mais perto, fez Aury cair perto da porta lateral, Dan a pegou no colo e assim que colocou o pé pra fora da casa, o tanque passou levando metade da antiga moradia, fazendo com que o resto desabasse.

Dan correu até alguns carros velhos empilhados a alguns metros e deitou-se atrás, junto com Aury,sinalizando para que ficasse em silêncio. Aury estava assustada, como Dan sabia do que iria acontecer?

Dan observava através da fenda entre os carros, os tanques eram do exército, se é que ainda se podia chamar de exército aqueles homens maltrapilhos que agora se divertiam em matar as pessoas, saquear casa e estuprar todas as mulheres que encontravam, ele sentia um ódio terrível crescer dentro de si, viu mais três tanques se aproximando, alguns soldados vinham correndo ao redor do tanque e atiravam em qualquer coisa que se mexia. A noite, apesar de escura, exibia os clarões das armas de fogo, facilitando assim com que aqueles animais fardados vissem suas vítimas.

Dan ouviu um barulho atras de si, mas era tarde, quando se virou levou uma coronhada na cabeça e desmaiou, enquanto via Aury se debatendo nos braços de um soldado nojento, que ria enquanto verificava a 'mercadoria', no caso, Aury. Dan acordou com fortes tapas em seu rosto, estava amarrado pelos braços pendurado numa árvore seca, Aury estava logo a sua frente presa do mesmo modo.

“Vejam só quem resolveu acordar para ver nossa festinha!" o soldado nojento falava enquanto apertava o queixo de Aury, olhando para o rapaz com um sorriso amarelado de dentes podres. Dan sentia um ódio tão grande, que tinha a impressão de iria explodir, olhou ao redor e viu que fora aquele verme asqueroso, só havia mais um soldado, que estava ocupado fazendo algum reparo em um jipe.

O soldado caminhou até Dan e apertou uma faca contra seu peito, fazendo um corte pequeno. "Acho bom você ficar de olhos bem abertos para ver o que farei com tua namoradinha rapaz, quero que veja todo o prazer que um homem de verdade tem que dar a uma mulher." disse isso e saiu gargalhando, indo em direção a Aury, que estáva muito quieta apenas olhando a cena. Seus olhos não demonstravam medo e isso irritou o homem.

"O que foi vadia, não tem medo de mim não?" tentou beijá-la, mas Aury mordeu com força seus lábios nojentos, cuspindo em seguida um sangue escuro no chão. O homem soltou um grito e desferiu um forte tapa no rosto da garota, com seu canivete cortou a corda que a prendia e a jogou no chão, pulando por cima de seu frágil corpo, Aury olhou para Dan, mas seu olhar não foi de desespero, foi um olhar de "tudo bem", ela estava disposta a se entregar e acabar com tudo de uma vez por todas.

Mas Dan não estava, sentiu que seu corpo adquiria uma força estranhamente sobrenatural, talvez o ódio o estivesse ajudando, não importava, puxou o máximo que pôde seus braços e sentiu quando a corda fez menção de romper, Aury tentava evitar a boca do homem que passava a lingua nojenta em seu rosto, as mãos dele subiam pelas pernas de Aury, levantando o vestido até sua cintura e tentava agora arrancar sua calcinha. Dan puxou ainda mais forte suas mãos e ouviu um estalo, o outro soldado percebeu e correu até Dan, mas ja era tarde, quando ele se aproximou, o rapaz pegou impulso e colocou as pernas no pescoço do soldado, apertando e girando, fazendo com que quebrasse seu pescoço e usando o peso dele para sair de vez daquelas cordas. Caiu no chão mas o homem que estava com Aury nem percebeu, de tanto tesão que estava, absorvido pelo cheiro feminino, quando ia tirando seu membro para fora, ficou com um sorriso congelado no rosto, enquanto sua cabeça voava até alguns metros.

Dan havia pego um facão que estava com o outro soldado e assim, sem pensar, decepou a cabeça do infeliz. O corpo sem cabeça caiu sob o corpo de Aury, deixando-a ensanguentada, e nesse momento sim, Dan percebeu o desespero da garota, ela gritava e chorava sem parar, empurrou o corpo e tentava limpar aquele sangue de seu vestido, gritava como se estivesse em chamas.





[Azathoth .'.]
O luar estava estranho. O halo em volta da lua tinha um tom muito escarlate, e a própria lua era arroxeada, púrpura, malva, um desses tons que poucos sabem definir com precisão. Vários fachos de luz dançavam pela escuridão das colinas perto da cidade, atingindo pontos de saque cobiçados. E perto, uma casa já deixada totalmente em ruínas, que antes parecia congelada no tempo, finalmente cedia à violência das eras que se passavam.

O tanque havia sido só um instrumento das eras. Como Dan percebia que agora ele também havia sido só um instrumento, uma ferramenta nas mãos da doença que matou, pouco a pouco, parte de seu cérebro, desde a infância. depois do transe enquanto lia o Kleshayana (era Kleshayama? Kleshayana? pouca diferença fazia), que agora repousava dentro de sua mochila, um gatilho dentro de sua mente reagiu contra aquela existência zumbi, de catador de lixo e carniça, solto no mundo mas prisioneiro de suas próprias memórias faltantes.

"Dan!" gritava Aury, amassando o vestido sujo de sangue arterial.

E ele já sabia. Seu nome era Dante e ele estava livre do seu passado, porque agora o conhecia. E não só seu passado, o passado de seu pai, de sua mãe, de seus avós, e voltando pelas eras e raízes até milênios atrás, se ele fizesse um esforço para recordar. Mas naquele momento, o esforço que mais o atordoava não era esse, e sim a visão de Aury gritando, tentando se livrar daquele cadáver sem cabeça e do vestido ensanguentado.

Jogou o cadáver do soldado para longe, e tentou ajudar a moça a limpar o vestido. Mas não, aquele vestido já estava imprestável desde antes, que dirá agora. E ela provavelmente perdeu todo o pouco que tinha com o ataque. As roupas do outro soldado, pensou Dante.

"Venha," tranquilizou a Aury, segurando seu rosto machucado. "Vamos dar um jeito nisso, sair daqui e depois, temos o que conversar." A garota estacou, meio impressionada: "Você está diferente..." de repente lembrou que, no desespero, o chamou de Dan, e calou-se, meio ressabiada.

Dante tirou o uniforme, em não muito bom estado, mas melhor do que o do soldado decapitado e muito melhor que o vestido de Aury, e percebeu que nela caberia perfeitamente, era de um sujeito baixinho e magro. Trouxe as roupas até a moça, e esta, percebendo a intenção, começou a despir-se.

Aquilo que antes era uma enorme ferida, pelo menos era assim quando Dan a havia visto pela primeira e única vez, agora havia se reduzido a uma cicatriz fina. Ele estendeu a mão e tocou o corpo da garota. Desta vez ela não fez menção de recusa, como havia sido em outras vezes.

Dan sentia um desejo enorme por aquele corpo nu, e mais ainda, pela própria Aury. O luar estranho os banhava e ambos tinham um certo brilho febril nos olhos, vistos sob aquela luz. O cérebro de Dante fervilhava de informações que dançavam, como ele nunca havia experimentado antes, e isso lhe dava um certo prazer, ele sentia a energia correndo por suas sinapses, se sentia dono de seu corpo e de sua própria vida. E sentia um potencial parecido naquele corpo nu de Aury, concentrando-se, focado, naquele ferimento. Dante não sabia se milênios de existência da humanidade na Terra haviam mesmo preparado aquilo que ele sentia no cérebro e no corpo de Aury, despertos agora pelo purgatório que havia sido aquele mundo depois dos clarões apocalípticos... aquelas divagações lhe ocorreram em poucos segundos, e ele escolheu as ignorar, porque diante dele havia algo bem mais importante: Aury, que lhe tomava nos braços e o fazia sentir descargas de prazer ainda mais fortes. Quantas vezes haviam reprimido aquilo.

E agora não estavam mais reprimidos, estavam livres. Era aquela a ilusão que parecia muito real, nos corpos nus agarrando-se numa ânsia e tesão quase sobrenaturais. Era tanta a ânsia que o primeiro contato durou pouco, em poucos minutos ela se fazia penetrar por ele, e em mais poucos minutos atingiam um orgasmo que aumentou ainda mais aquela sensação de liberdade.

Tentando controlar as sensações avassaladoras, Dante se desvencilhou de Aury e disse, "Vamos sair daqui logo, antes que mais soldados venham e nos encontrem assim. Acho que tenho um plano, vista logo esse uniforme." Foi checar as roupas do decapitado e viu que estavam também sujas de sangue, mas o pior era o fedor.

A menina sorria enquanto vestia a roupa de soldado, consciente agora de coisas que antes não tinha ideia. "Vambora," ela riu, "você também vai precisar de um uniforme mais decente e importante que esse."





[Draven]
Conforme saiam, Dan e Aury não perceberam o vulto encapuzado que ainda seguia a moça, observando calado a todos os acontecimentos.

O vulto parou sobre uma carcaça de um antigo guindaste que pairava sobre o local abandonado onde os jovens se encontravam há poucos momentos. Sondou o ambiente, esperando que outros soldados viessem, mas percebeu que eles ainda estavam longe.

Espiou um daqueles 'tanques' que vira agora há pouco e esboçou um sorriso sob o manto. Seria quase um sorriso imperceptível, se alguém pudesse realmente vê-lo. Sabia que não eram realmente antigas máquinas de guerra, e que aqueles não eram realmente soldados. Abaixo da carapaça blindada de um Panzer IV provavelmente estava algum motor primitivo remontado e reestruturado para ser movido a gasolina auxiliada por força humana. O canhão já não funcionava há muito tempo. Assim como as armas de fogo deles já estavam caindo aos pedaços, e eram quase menos eficiente que a arma mais usada nessa época de declínio tecnológico: obviamente, o arco e flecha.

Soldados... Que piada... Eram apenas saqueadores que provavelmente encontraram alguma base abandonada ou um museu...

Claro que o vulto nunca havia visto realmente um Panzer, nem como as armas funcionavam em seu tempo áureo, e só sabia o que era um soldado, um museu ou um motor porque esse conhecimento lhe fora passado. Ninguém dessa época poderia ter visto realmente uma dessas coisas.

Ao pensar nisso, também lembrou-se da cena que vira há pouco. O que aconteceu aos jovens. Nada de realmente impressionante, nada que não tenha visto algumas vezes. É certo que sua atitude seria moralmente repreensível, ao não se envolver no evento, mas quem poderia julgá-lo por isso? E se julgassem, quem poderia puni-lo? Aqui não havia lei, não havia ordem, e certamente não havia quem sequer pudesse vê-lo.

Esperou até que os jovens estivessem distantes o suficiente para que continuasse os seguindo, incógnito, e partiu. Mas não sem deixar uma pequena surpresa para os saqueadores que logo chegariam: seu pequeno presente de agradecimento por terem apressado as coisas.

Soltou o mesmo sorriso imperceptível momentos depois, quase se deliciando com os gritos que seguiram a explosão, e pensou o quanto era incrível o que se podia fazer com corpos decompostos, materiais subterrâneos, rochas e remédios velhos – coisas relativamente fáceis de achar. Nos tempos antigos, era chamado de Amatol, derivado do Trinitrotolueno.

Não deixaria que aquele lixo humano atrapalhasse sua tarefa. Não deixaria que nada ficasse no caminho da sua missão. Havia nascido para esse momento. E agora tudo estava acontecendo ainda melhor do que havia previsto.
Voltou para as sombras, e correu silenciosamente para alcançar novamente os jovens...





[Neith]
Após horas andando pela escuridão, numa direção que só Dan parecia saber onde iria chegar, Aury parou e sentou-se no chão.

"Preciso descansar... meus pés doem tanto..." disse isso enquanto tirando as botinas, massageando os dedos. Dan parou e olhou para ela meio impaciente.

"Não podemos e nem devemos parar agora, temos que continuar, vamos, levante-se."

Aury continuou sentada.

"Não, eu não aguento mais andar, você por acaso sabe aonde estamos indo? Não saio daqui até descansar um pouco." Dan irritado aproximou-se rapidamente e a pegou forte pelo braço puxando para cima.

"Ou você se levanta agora e começa a caminhar, ou então..." Havia uma expressão de ameaça nos olhos dele, Aury sentiu seu corpo todo estremecer, seu braço ficou dolorido onde ele agarrara.

"Me solte, eu não vou com você, se quiser pode continuar sozinho!" Ela estava irritada com a forma como Dan estava agindo nos últimos minutos, não parecia o mesmo, algo estava errado com ele. Puxou o braço com força, se soltando dele e se encolhendo.

Dan sentiu o sangue ferver, então agarrou Aury pelos ombros e a fez ficar em pé, começou a arrastar a garota pelo caminho. Aury gritou para que parasse mas ele não a ouvia, continuava caminhando, ela tentou mordê-lo, então Dan fez algo que jamais poderia imaginar que fosse fazer, deu um forte tapa no rosto da garota, seus olhos estavam extremamente escuros como se fossem dois abismos sem sentimentos.

Aury se soltou assim que levou o tapa, com os olhos cheios de lágrimas e a mão sob a marca vermelha em seu rosto ela foi se afastando devagar, podia ver Dan ali, parado a sua frente, parecia outra pessoa, não demonstrava arrependimento, ficou apenas parado olhando para Aury com seus olhos gelados.

A garota deu meia volta e começou a correr sem rumo, de vez em quando olhava para trás, na esperança de que Dan a estivesse seguindo para se desculpar, mas estava sozinha em meio a escuridão, correndo sabe-se lá para onde. Continuou correndo por algum tempo até encontrar um carro velho, então deitou-se no banco traseiro e adormeceu exausta.

Dan ficou parado olhando Aury sumir na escuridão, por um breve momento era como se não estivesse ali, sentia seu corpo, via tudo ao redor, mas não sabia exatamente o que estava acontecendo. Porque Aury estava correndo dele? Depois de alguns minutos Dan sentiu seu corpo doer, caiu de joelhos e com as mãos apoiadas no chão começou a tossir, a tosse era tão forte que parecia que seus pulmões iriam sair pela boca, o coração estava muito acelerado e ele não conseguia enxergar direito, estava tudo embaçado a sua frente, caiu de costas fazendo força para respirar, foi quando sentiu que algo ou alguém se aproximou.

Não conseguia identificar a criatura sombria que estava a sua frente, mas sentia em sua alma que era algo muito forte, a sombra tocou sua fronte de leve.

"Não se preocupe, Dante, logo tudo vai ser como deveria ser, apenas descanse."





[Azathoth.'.]
"Você não é único," declarou o vulto. "Existem outros como você, que nunca foram afetados negativamente pela doença. Pelo contrário: os buracos na mente, abertos pela doença, garantiram acesso às memórias de nossos antepassados... se você realmente fizer um esforço, esforço que não recomendo que faça agora, é claro... se não quiser morrer... poderá atingir camadas tão obscuras e enterradas, passando pelos elos perdidos da natureza, que acessará instintos animais primitivos, e de coisas que se imiscuíram na biologia humana em eras passadas."

"Eu e meus companheiros que vivem no subterrâneo somos como você. O que lhe aconteceu foi apenas que você foi tomado por um atavismo, se comportou como outra pessoa porque de fato tem outras pessoas dentro de si. Alguma coisa no meio do caminho pareceu muito com a situação que alguém em sua árvore genealógica havia passado, e esse alguém não era uma pessoa muito gentil."

Dan continuava tonto enquanto ouvia o homem, que ao chegar mais perto, revelou-se muito pálido e de gestos teatrais; ainda não dava para ver seus olhos, encoberto por um capuz escuro, perfeito para vagar na noite de modo discreto.

"A minha casta tem acesso a coisas que você jamais imaginaria antes, simplesmente porque temos conhecimento e sabemos onde procurar. Sabemos truques... melhor não mencioná-los agora... mas somos todos irmãos de sangue, parentes, e nunca soube de nenhum de nós surgindo espontaneamente na superfície." O vulto mexia em algo dentro de seu manto de viagem. "Você não é um irmão de sangue, mas é um irmão de memórias, não é como esses lethean vulgares que moram aqui em cima. Como irmão, pude sentir sua confusão; os anciões chamam essa capacidade de empatia. Eu sei que você consegue me entender, não é mesmo? Só não consegue responder porque não domina bem o corpo... bem, precisará aprender a dominar o corpo, e para isso há um teste... Dante."

Dan não notou que o estranho havia lhe tocado as vestes em algum momento, e agora se afastava dois passos, dizendo: "Se quer vir comigo e aprender a usar seu potencial, deve se livrar da garota."

Muito bem, pensou o vulto. Vamos ver se ele cai nessa.






[Draven]
“Como assim me livrar dela?!?”, foi o que Dan gritou, pouco antes de outro daqueles ataques de tosse. A ideia de se separar de Aury era impensável para ele. Não que ele já não tivesse considerado isso antes, mas com o passar do tempo percebeu que não faria isso. Ela era tão frágil, e precisava tanto dele... Não, ele estava mentindo para si mesmo, sabia disso, sabia que quem realmente precisava dela era ele.

“Ora, fica ao seu gosto, meu caro Dante.” O homem parado à sua frente parecia fazer questão de pronunciar seu nome com certa entonação. “É o seu teste, afinal.”, continuou, despertando Dan daquele pensamento e lentamente o fazendo retornar à lucidez.

“E como vou saber que está falando a verdade? Como vou saber se não é um bandido, como os outros? Ou um desses insanos canibais?”, disse Dan asperamente.

O homem discretamente recuou alguns passos, enquanto respondia com um ar de lógica fria: “Vocês estão cansados, e ficaram tão compenetrados em sua pequena discussão que qualquer um poderia tê-los matado. Vá, Dante, faça o que tem que fazer. Estarei observando... das sombras.”

O homem sumiu entre os escombros escuros coberto pela noite, deixando um Dan indeciso sobre o que acreditar ou o que fazer...

****

A sombra sorriu ao perceber a pequena Aury observando a conversa dos dois, tentando se fazer escondida. Claro que ela voltaria, não poderia abandonar Dan daquele jeito. Ela obviamente o amava, e era retribuída.

A sombra estava jogando com esses sentimentos. Não havia mentido totalmente para Dan, mas também não havia sido completamente honesto. A verdade é que praticamente todas as pessoas desse mundo tiveram, ao menos uma vez, aquele tipo de experiência. Elas apenas não lembravam.

Aquele era realmente um teste, mas não um teste para Dan. Era um teste para Aury. Quase um século de experiências de seu povo finalmente haviam chegado a uma conclusão, e Aury era o que eles estavam esperando. Havia passado no teste físico, agora precisava passar no teste psicológico, e Dan era a chave.

Ambos iriam desempenhar o seu papel. A sombra sacou um pequeno dispositivo sob seu manto, algo letal conhecido como Taurus PT 938 Silenciada, preparada para o que tinha que fazer.






[Neith]
De onde Aury estava, não podia ouvir direito o que estavam conversando, mas ouviu perfeitamente a palavra "teste".

"De que teste estão falando, quem é esse homem estranho?" pensava
muitas coisas ao mesmo tempo, teve vontade de entrar no meio da discussão e tirar Dan de lá, mas uma voz em sua mente dizia "espere, apenas espere".

Aury esperou, não sabia nem porque, mas esperou, essa voz agora em
sua cabeça, o que era aquilo? Será que finalmente ficaria louca como muitos que
perambulavam por aqueles locais?

Assim que o homem de capuz se afastou, Aury foi em direção a Dan, que continuava deitado no chão, um olhar perdido na imensidão escura do céu estrelado.

"Dan, levante-se, temos que sair daqui antes que..."

Aury nem teve tempo de dizer o resto da frase, sentiu uma movimentação estranha do ar, algo muito veloz veio em sua direção e atingiria em cheio a cabeça de Dante caso ela não tivesse percebido e o puxado de encontro a seu corpo.

Neste momento Aury percebeu o mundo à sua volta mudar drasticamente, como se todas as ruínas voltassem a ser como um dia haviam sido, viu perfeitamente construções imensas e belas, árvores por todo um caminho e uma imensa bola amarela num céu azul, a bola amarela era o sol, mas Aury não sabia disso, ela não chegou a tempo de ver todas essas belezas.

Ficou paralisada por um breve segundo e então tudo voltou a ser como
era, destruição e poeira por todos os lados.

A sombra sorriu satisfeita, pois participou daquele momento junto com
Aury, "Hum... esplêndido, exatamente como disseram que seria, agora posso
seguir com meu plano."

Dante fixou seus olhos em Aury, seu olhar novamente parecia sem vida,
era como se não reconhecesse a garota, Aury ficou olhando para ele sem nada
dizer, sentindo seu corpo quente abraçado ao dela, e por um breve instante
esqueceu-se de onde estavam.

Mas Dante quebrou o silêncio empurrando Aury com força.

"Não é seguro que você fique comigo, Aury, mas também não é seguro
que fique sozinha..."

Ela se aproximou e tocou de leve o rosto de Dan.

"Não conseguiria me afastar de você mesmo que eu quisesse, e agora sei que estamos sendo vigiados desde há muito tempo, precisamos de um plano Dan, mas não acho seguro que conversemos aqui, coisas estranhas estão acontecendo comigo e eu temo isso tudo mais do que nunca.”

Dante se levantou, e batendo na calça para tirar a poeira estendeu a mão para Aury.

"Vamos seguir em frente, eu protegerei você."

No fundo Dan sentia que não saberia como fazer isso, como proteger Aury se ele próprio não havia se protegido daquela sombra que os seguira por toda a estrada?

Aury segurou a mão de Dan e nesse instante percebeu que algo dentro dela mudava, e mudava muito rápido, uma força crescia dentro da garota, algo sombrio e extremamente perigoso, ela deixou uma lágrima escapar ao pensar que isso poderia afastá-la para sempre de Dante.






[Azathoth.'.]
Andaram por mais ou menos uma semana, pelo caminho inverso do “exército” que havia devastado e saqueado a vila e as habitações próximas da casa de Aury. A casa que agora não passava de uma ruína.

Sonhos e pesadelos atacaram o sono de ambos os fugitivos, durante os sete dias daquela fuga pela estrada, alimentando-se dos suprimentos roubados dos soldados e de animais que tanto Aury quanto Dan conseguiam caçar e matar com uma facilidade surpreendente.

Em um desses sonhos Aury andava pela casa, não uma ruína nem a casa abandonada em que viveu, andava em meio a uma festa ruidosa, aristocrática, os homens e mulheres riam, brindavam… Aury via um homem muito branco, usando uma roupa listrada que um velho da vila chamava de terno (roupa que o velho vestia, embora a do ancião fosse muito esfarrapada); o homem sorria para ela e erguia uma taça, brindando como na antiga cerimônia sazonal do povo da vila.

O sonho era em primeira pessoa, automatizado, seguindo uma espécie de roteiro, e Aury erguia uma taça, respondendo ao cumprimento do estranho. Enxergava a taça logo diante de seu rosto, e percebia que sua pele era tão mais morena que o normal … e então ia para aquele que seria seu quarto, todo mobiliado, e lá havia o espelho… e Aury enxergava então o seu corpo, um tanto parecido com ela mesma, mas quase mulata, os cabelos mais crespos, e ficava fascinada diante de si mesma, até que o homem de terno chegava por trás dela e… o sonho então se distorcia, e aconteciam outros sonhos, com Aury vivendo em outros corpos, nem sempre femininos… nem sempre humanos… nesses últimos sonhos, o fascínio muitas vezes dava lugar ao horror.

E muitos dos sonhos tinham como palco, a casa tão adorada. Outro dos sonhos que eram mais repetidos envolvia um homem que se parecia muito com Dan; e no sonho ele dizia se chamar, também, Dante. A diferença era que ele usava uma bengala para apoiar sua perna defeituosa, tinha olhos de uma cor diferente, e usava roupas que Aury nunca vira antes… e pedia para ela guardar um livro. O mesmo livro que o Dan real guardava na mochila.

Umas três ou quatro vezes, antes de dormir, os dois fizeram amor no mato rasteiro perto da estrada. Depois ficavam calados, sem saber o que dizer; e sabiam que acabariam sonhando, mas não conseguiam comentar o conteúdo dos sonhos um com o outro.

Na sexta noite, Aury acordou em meio a um desses sonhos recorrentes, aquele que se chamava Dante, com seus olhos tão bonitos, pedia que ela não lesse o livro que deveria guardar; e ele partia para uma espécie de guerra … mas ela lia, assim mesmo. E descobria que o livro era só um comentário de um outro original, mas que trazia em si uma parte de um conhecimento, uma ideia: a humanidade tinha um propósito… era agente da entropia natural. Ciclos e ciclos de civilização, sempre se destruindo e destruindo o mundo ao redor. E, a cada ciclo, o alcance da humanidade, esse flagelo, aumentava… não demoraria muito, dizia o livro, para que o ser humano alcançasse as estrelas e ameaçasse destruir o universo. Os ciclos poderiam ser evitados se a humanidade acessasse suas próprias memórias raciais, enterradas lá no fundo do inconsciente, do sangue… mas as técnicas que o livro ensinava – eram parábolas estranhas que ocultavam métodos de acesso às memórias ocultas, parábolas muitas vezes sangrentas, envolvendo canibalismo, trepanação, orgias sadomasoquistas – não eram para deter os ciclos: pelo contrário, serviam para que o iniciado no Kleshayana, o veículo da corrupção, desfrutasse do prazer quase cósmico de viver, na própria mente, a deterioração do mundo, do universo, o sacrifício da existência nas mãos do flagelo humano.

E aquele Dante queria o livro escondido, mas o pegaria de volta, assim prometia nos sonhos. Só que, sabia a mulher de quem Aury acessava as memórias durante o sonho inexperiente, ele nunca havia voltado, talvez houvesse morrido.

Aury observava o seu Dan dormindo a sono solto, mas um sono inquieto, e sentiu a tentação de abrir-lhe a mochila e ler o livro. Quem sabe ali houvesse alguma maneira de dominar os sonhos – haviam sonhos muito piores que aquele, de morte, assassinato, massacre, amor não-correspondido, guerra, peste… seu próprio corpo às vezes assumia formas estranhas, e ela se desesperava, presa em meio a um bando de animais em fuga.

Queria aprender como controlar aquilo – o livro a ajudaria?

Tinha certeza de que Dan também sonhava suas próprias memórias, o comportamento dele ao acordar era muito parecido com o dela, olhava o horizonte, meio desfocado… e agora, as pálpebras do rapaz se mexiam, os olhos se movimentavam freneticamente, fechados. Sim, estava sonhando.

Não havia mais cicatriz alguma no corpo de Aury, e ela quase não se cansava ao correr pela estrada, sua resistência havia aumentado bastante, seus olhos – ela antes era um pouco míope, só o suficiente para conseguir sobreviver mesmo com a visão um tanto fraca, mais que isso, não conseguiria viver sozinha – agora eram aguçados como os de um falcão, e ela reagia a qualquer barulho no mato perto da estrada, com uma velocidade alarmante. Caçar era tão fácil agora… A garota sabia a razão disso tudo, nos sonhos a razão disso lhe aparecia, mas ela acabava esquecendo no primeiro minuto após o despertar… outra razão para procurar as tais parábolas no livro proibido.

Ela já ia tocando a mochila, certa de que Dan estava preso em seus próprios sonhos e não ouviria nada, quando teve a nítida impressão de que havia alguém perto, escondido e observando.






[Draven]
“Aquilo estava fora dos planos”, pensou a sombra, enquanto começava a se preocupar. Era certo que Aury tinha exatamente as reações que eram esperadas, mas nos últimos dias percebeu que não apenas ela havia se desenvolvido, mas que Dan também apresentava exatamente as mesmas características. Havia algo muito errado nisso.

Com a da noite anterior, já haviam sido quatro tentativas de assassinato falhas, e a sombra já havia desistido dessa ideia. Precisara causar um abalo psicológico muito forte em Aury para testar os últimos aspectos da 'cura' que nela foi instalada, mas definitivamente matar Dan agora estava fora de cogitação.

Teorias passaram rapidamente pela sua cabeça, mas não era tão bom em biologia, não era sua área de atuação. Como 'cientista', sua especialidade era química, especialmente voltada à produção de materiais bélicos. Desconfiava que o material genético 'especial' de Aury poderia ter metamorfoseado algum tipo de vírus (sexualmente transmissível?) após sua alteração na noite em que a encontrou, mas isso só poderia ser confirmado se pudesse levá-la a seus anciões, o que estava fora de cogitação nesse momento. Uma coisa era dominar um humano psicologicamente abalado como era seu plano inicial, outra bem diferente era vencer dois humanos geneticamente melhorados, capturá-los vivos e carregá-los por quilômetros.

Não é que essa mudança em Dan fosse de todo ruim, talvez fosse exatamente isso que eles precisavam para salvar a humanidade, mas era um fator desconhecido, e fatores desconhecidos podem ser catastróficos. Sentia sua missão lentamente se transformando em fracasso...

Ainda se lembra quando teve a honra de ser escolhido entre dezenas, para observar o andamento da última geração da experiência para criar o novo messias. Ele foi intitulado 'Guardião do Escolhido' por sua inteligência, capacidade e bravura, ainda jovem. E no dia de sua nomeação, a verdade lhe foi revelada: a humanidade estava prestes a morrer definitivamente.

Os históricos dos seus ancestrais, soldados e cientistas sobreviventes da Segunda Grande Guerra Nuclear, que lhe foram passados indicavam que a humanidade havia contraído características marcantes e perigosas.

A Síndrome Genética Pós-Traumática, que chamavam na superfície de 'A Doença', era causada por uma derivação congênita do Transtorno de Estresse Pós-Traumático, uma doença psicológica comum em casos onde uma pessoa observa o horror da guerra. Quatro guerras mundiais e duas guerras mundiais nucleares gravaram isso profundamente nos genes humanos.

Além disso, novas bactérias afetadas por radiação e dependência química a certas drogas, deterioraram significantemente o físico humano. Isso foi especialmente marcante no que diz respeito à regeneração dos tecidos.

O único caso de aparente evolução foi a manifestação de memórias ancestrais, um aspecto fundamental para a sobrevivência da espécie no ambiente hostil da natureza. Porém, isso não os salvaria dos problemas criados pelo próprio homem.

Assim, seu grupo familiar, mesmo composto de poucas pessoas, se dedicou por décadas à procura de pesquisas e tecnologias pré-guerra para ajudá-los nessa tarefa. E, no final, a solução era ridiculamente simples, mas muito demorada e exigia muitas cobaias.

O que precisava se fazer era criar um ser humano melhorado, 'limpo', com um sistema imunológico mais consistente, e a solução estava em alguns animais que resistiram e se adaptaram à guerra. Especificamente, na organela chamado mitocôndria, que evoluía cerca de três vezes mais rápido que seus portadores. Então, inserindo uma pequena parcela do genoma modificado em um grupo de mulheres na superfície, em gerações elas passariam para suas herdeiras mulheres (devido à ausência da alteração que gerava o homem), até que uma possuiria os genes necessários que seriam ativados pela “Chave do Messias”, um composto que ativaria a modificação em sua amplitude.

O Messias era Aury. Ela havia passado pelo teste físico quando ele tinha injetado nela a Chave do Messias, e estava se desenvolvendo rapidamente. A única coisa que faltava era o teste psicológico, um abalo emocional muito forte, que demonstraria sua imunidade ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático, e, consequentemente, à Síndrome Genética Pós-Traumática. E Dan era o elemento perfeito para causar esse abalo. Era, até se tornar um objetivo quase impossível.

'A sombra' era como se chamava, porque também era afetado pela 'Doença' e conseguia lembrar de tudo, exceto seu nome verdadeiro. Esquecer seu próprio nome era seu único tormento, mas parecia mais pesado que qualquer outro fardo. E agora, com a falha iminente, suas esperanças diminuíam.

Um último plano se formou em sua mente. Era arriscado, mas ele teria que usar o grupo de bandidos que tinha uma base na região, ao qual Aury e Dan haviam matado alguns membros recentemente. Se afastou rápida e silenciosamente dali, preparado para começar uma verdadeira caçada. Se pudesse empurrar os dois para a direção da base subterrânea de seu grupo, poderiam dominá-los lá.

Era arriscado, mas estava certo que poderia evitar que Aury morresse. Estava pronto para se sacrificar por Aury. Afinal, ela era seu Messias, seu Salvador, ela iria guiá-lo ao seu próprio nome.

Sentiu um calafrio na nuca. Não havia percebido algo muito importante, algo que poderia mudar tudo, algo que estava com eles, mas não sabia o que era. Algo desconhecido, uma sombra do verdadeiro mal...

***

Aury sentiu aquele estranho sair. Podia perceber sua inquietude e suas preocupações, mesmo que não soubesse exatamente o que poderia ser, e por isso deixou a sombra em paz dessa vez. Não havia perigo nele, apenas algum tipo de obsessão que ela não compreendia.

O perigo agora estava na sua frente, naquele livro que ela abriu e começou a folhear, prestes a absorver seu terrível conteúdo …






[Neith]
Aury observou cada gravura do livro com minuciosa atenção, as palavras pareciam não fazer muito sentido, mas mesmo assim leu cada uma delas, ao final do livro, uma última gravura, com uma extensa frase logo abaixo. Era o desenho de uma mulher envolta em sombras, estava nua e as sombras pareciam formar rostos, e todos os rostos pareciam olhar para o céu, a mulher olhava pra a frente com uma expressão austera e apontava o dedo para alguém. A frase não fazia sentido algum, “QHIPAÇUMTTHIQUAMPÇPHAMTQUIÇQUITHAMÇP”.

Aury repetiu algumas vezes mais não conseguiu identificar o que poderia ser.

Fechou o livro e deitou-se novamente, ficou olhando para o céu, um céu escuro e feio, alguns relâmpagos as vezes faziam as nuvens se iluminarem e formarem terríveis espectros.

Sentiu sua vista turvar, e então, no mesmo céu onde antes havia nuvens apareceram palavras, as mesmas palavras sem sentido do livro... e então... elas se agitaram e se reorganizaram, formando frases que Aury entendia perfeitamente, e então, página por página no céu foram reescritas e organizadas de modo que Aury entendesse... e então... ela percebeu que as gravuras na verdade eram “gatilhos”, serviram apenas para fazê-la lembrar e entender cada frase do livro, a ultima imagem era uma sentença, a garota sentiu algo dentro de seu corpo fervilhar... e então... seus olhos tristes e melancólicos deram lugar a novos olhos... olhos vingativos e cheios de conhecimento.

Dan acordou e viu que Aury não estava ao seu lado, levantou-se assustado mas viu a garota a alguns metros, parada, olhando o horizonte. “O que está fazendo Aury?” aproximou-se da garota colocando suas mãos ao redor da cintura da garota.

“Precisamos ir”, Aury olhou para Dante com tanta determinação que ele sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo, ele sabia que era ela, mas havia algo diferente em seu modo de agir, algo determinado e destemido.

“Tudo bem, mas para onde você acha que devemos ir?”

A garota apontou para uma espécie de barracão que havia no horizonte, não estavam muito longe, algumas horas de caminhada e chegariam. “Vamos para lá.”

O vulto que os seguia ficou feliz por ver que eles estavam na direção que ele queria, mas não entendia como a garota havia tomado essa decisão sem que ele tivesse interferido, de qualquer forma ele estava feliz, e tudo parecia estar dando certo.

Seguiram o caminho sem nada dizer um ao outro, Dante estava cheio de perguntas e dúvidas com relação àquela mudança de Aury, por que ela estava tão diferente?

Um pouco antes de chegarem ao local, Aury virou-se para trás, o caminho que haviam percorrido era cheio de destroços, o céu estava com uma cor âmbar num tom escuro e sujo, mesmo durante o dia as vezes parecia ser noite, ela olhou para um ponto perdido na estrada, com um olhar firme e uma voz autoritária disse “Não farei nunca aquilo que você espera.”

Dan ficou assustado com a cena, será que Aury estava enlouquecendo? Ficou observando a garota passar por ele e seguir para a entrada principal do galpão.

Quando entraram foram pegos de surpresa, havia diversos 'soldados' lá dentro, carcaças humanas em trajes de guerra, todos gritaram e correram na direção de Dante e Aury para pegá-los, antes que eles chegassem mais perto Aury pronunciou uma frase que imediatamente surtiu efeito neles, todos caíram de joelhos com as mãos na cabeça, seus cérebros fervilhavam, as palavras de Aury buscavam dentro de suas lembranças, coisas que os paralisavam de medo e remorso.

Dante ficou estacado olhando a cena, Aury se virou para ele e segurando sua mão continuou andando “Vamos Dan, é por aqui.”

Chegaram ao fundo do lugar onde havia uma imensa máquina enferrujada, antes podia ser que a garota não reconhecesse aquilo, mas agora ela sabia o que era. Aquele imenso amontoado de ferro havia sido um dia uma das máquinas mais inteligentes do planeta, usado para interceptar milhões de mensagens e vigiar civis suspeitos, ela foi uma colaboradora para as guerras que aconteceram, graças a ela muitos morreram sem nem mesmo saber o porquê.
A garota subiu na imensa máquina e puxou Dan para que fizesse o mesmo. “O que está acontecendo Aury?”

O vulto entrou pela porta da frente e viu todos os homens caídos ao chão se contorcendo como vermes, olhou para o fundo e viu os dois jovens, ficou com raiva e correu até eles.

Aury segurou as mãos de Dan, olhava seus olhos e sentia seu coração bater. “Dan, um dia vamos nos encontrar novamente, esteja preparado para se lembrar.”

“Mas...”

Dan não terminou a frase, o vulto se aproximou e sacando sua Taurus PT 938 atirou em seu peito fazendo o rapaz cair de joelhos.

Aury o segurou nos braços e seus olhos encheram-se de alegria ao ver que o tiro fora certeiro. “Pronto meu amor, agora você não precisará ver o que farei, você vai descansar e esperar até que eu o desperte novamente... não foi o que havíamos combinado?” ela beijou os lábios de Dan enquanto ele sorria sem saber o motivo e seus olhos fechavam-se lentamente.

A garota se levantou deixando o rapaz caído e olhou para o vulto “E agora, o que fará?”

“Você passou no ultimo teste Aury, agora devo levá-la a meus anciões, você está pronta.”

“Idiota!”


Dizendo isso a garota foi envolvida por uma névoa escura e cheia de ódio, “Por acaso achou que eu seria tola o suficiente para cair no jogo de vocês, humanos imundos?”

O vulto ficou apreensivo, o que estava acontecendo afinal?

A névoa se desfez pouco a pouco e a garota estava agora nua, mas sua pele era grosseira como as escamas de uma serpente, seus pés eram como garras de pássaro e suas mãos pareciam mais longas com unhas afiadas, os olhos de Aury eram negros como as nuvens do céu noturno, e sua voz ecoava agora como trovões.

Ele deu um passo para trás.

“Vincent!!” ela gritou e fez com que o teto tremesse.

O vulto caiu de costas e seu capuz caiu pelas costas deixando seu rosto moreno aparecer, tinha olhos azuis quase brancos, talvez uma anomalia genética, parte de seu rosto era como as escamas da pele de Aury agora.

“Esse nome...” ele balbuciou e sentiu que sua cabeça iria explodir, com as mãos apertando a fronte pedia para que Aury parasse com aquilo.”Pare por favor...eu só queria...”

“Salvar a humanidade? É isso?”

Ele tentou se levantar mas seu corpo doía e suas pernas não obedeciam.
“Pois bem meu caro Vincent, eu estou aqui justamente para impedir que isso aconteça, ou acha que eu sempre fui uma tola que não sabia dos propósitos dos anciões?”

“Eu não entendo...”

“Claro que você não entende, sempre foi o cachorrinho deles, por acaso você algum dia questionou as ordens? Ou eles te explicaram o que você é?

Tudo o que houve já estava programado, Dante foi quem planejou tudo isso, embora ele não se lembre... porque foi há muito tempo atrás. Mas tudo o que fiz, todas as minhas atitudes e todas as coisas que eu disse a ele eram “chaves”, “gatilhos” que o faria despertar assim que fosse o momento, mas você arruinou tudo isso com tua ignorância e traição!”

Vincent se levantou finalmente e encarou Aury. “Traição?”

“Sim, você era um de nós, mas graças a tua cobiça pelos sentimentos humanos caiu nas mãos deles e foi “apagado” como todos os outros e colocado aqui, eles queriam criar o humano perfeito para povoar o mundo com pessoas perfeitas, mas só não contavam com uma surpresa, a primeira cobaia não era totalmente humana e por isso não foi modificada da forma como eles esperavam, ela criou um código, e usou de seus poderes para “esquecer” a verdade assim seria desperta na hora certa.”

“Você...”

“Sim, sempre foi eu, e eu sempre controlei aqueles que pensavam que me controlavam, embora quase inconsciente, eu mesma me prendi nesta teia de esquecimento para proteger o retorno de Dante, e você estragou tudo!”

“Mas a raça humana está em extinção...e agora o que faremos?” Vincent ajoelhou-se com o rosto entre as mãos.

“Imbecil!! Você NÃO é humano!!!! E este não é o planeta idiota deles!”

Vincent sentiu como se fosse atingido por um raio.

“Isso aqui é um mundo paralelo de simulação pós-apocalíptica, todos estamos vivendo uma mentira aprisionados aqui pelo tempo que eles desejarem, eles fizeram isso para que, depois que descobrissem a fórmula genética perfeita, pudessem pôr em ação o projeto de eliminação de humanos imperfeitos, embora isso já tenha começado há muito tempo sem que as pessoas saibam, eles usam doenças para o extermínio dos mais fracos.”

“Não consigo lembrar de nada disso, porque você consegue?”

“Você é apenas um fantoche para eles, apagaram tudo o que você conhecia sobre si mesmo.”

“O que você fará, agora que despertou Aury?”

“Eu sei como atravessar o portal e ir para o mundo deles, lá os farei sofrer e liquidarei eu mesma com a humanidade, Dan estará me esperando em algum lugar, pronto para ser desperto daquele lado, e então, juntos faremos com que “os anciões” se arrependam de um dia ter nos aprisionado!”

“Aury... não me deixe aqui...”

“Você é um traidor e não significa nada para mim, eu mesma acabarei com tua vida, mas não agora, deixarei você aqui para que sofra com sua miséria!”

Aury segurou na plaquinha que carregava em seu pescoço e apertou forte, puxou arrancando e assim uma intensa luz se formou ao redor de Aury que pronunciou s palavra “QHIPAÇUMTTHIQUAMPÇPHAMTQUIÇQUITHAMÇP” e sumiu do galpão.

Um eco ainda pairava sobre a cabeça de Vincent, “ANIQUILAR A HUMANIDADE É A UNICA OPÇÃO, ELES NÃO MERECEM VIVER ENTRE NÓS”.





[Azathoth.'.]
O vulto, ou Vincent, ou o vulto de Vincent, arrastou-se um pouco e depois conseguiu se pôr de pé e ir até a máquina onde ainda jazia o cadáver de Dante. Do lado do corpo, as roupas velhas que Aury vestira, deixadas mais ou menos no lugar onde ela, há pouco, havia sumido.

Afinal de contas, pensou ele, essa história toda me causou um grande impacto, mas também pode não ser exatamente como ela disse. Eu sou um cientista, afinal – ou pelo menos acho que sou. Tenho de verificar isso.

Começou a mexer no maquinário, abriu a mochila dos dois para ver se havia alguma coisa que havia lhe escapado ao escrutínio e percebeu... o diabo do livro. Estava ali.

E ele precisava ler.

O treinamento dos anciões o havia dotado de leitura rápida. As páginas se passavam, a informação era absorvida, sem críticas, sem julgamento... sem proteções.

Concentração total no livro significava distração total para com o ambiente.

Então, Vincent foi surpreendido pela mão em seu pescoço. Ela apertava, ele perdeu o fôlego, e ia desmaiar, se a força não relaxasse e lhe permitisse recuperar o ar.

Dante. Estava vivo. “Você!” gritou o moço redivivo, “Foi longe demais no seu papel. Eu quase morri, seu idiota.”

Vincent ficou sem reação; o tempo concentrado no Kleshayana o havia perturbado o suficiente para que ele não pudesse responder nem mesmo àquela frase: só olhava assustado.

“Você não conseguiu se valer dos gatilhos que o levariam a fazer as coisas direito, e agora estragou tudo. Ela está achando coisas demais, distorcidas, e você atrapalhou o plano ancestral.”

“Do que está falando?” gritou Vincent, frustrado.

“Aqui, seu imbecil.” E Dante ligou a máquina. “Comunicação e transporte tornaram-se a mesma coisa, eras atrás... antes do Segundo Holocausto Nuclear; antes do Pulso Eletromagnético Global; antes da Doença. Esta foi uma das máquinas que sobraram, que ainda funcionam, embora mal, e só há uma outra... funcionando... vê?”

Dante continuou: “Parece um milagre que as baterias não tenham se esgotado, mas elas duram muito e foram renovadas pelo povo do subterrâneo, que espera... em vão, graças a você.”

“Agora, em vez de se achar a salvadora da humanidade, ela crê ser uma alienígena. E com certeza ela É uma alienígena, não duvide disso. Nós aproveitamos o DNA extraterrestre o suficiente para que nos vingássemos dos alienígenas que causaram o pulso e que criaram essa doença... tentando nos conter aqui no planeta, evitar o destino da humanidade, como o interpreta mal esse livro que você tem nas mãos... e ao mesmo tempo fortalecêssemos a espécie humana com uma figura messiânica como ela, produto da evolução; ápice do progresso humano; redentora dos erros da humanidade; e qualquer outro blá-blá-blá que você possa imaginar.”

“E o que ela vai fazer agora?”

“Os circuitos desta máquina agora estão inoperantes por causa do teleporte malfeito. Não tenho como saber se ela realmente atingiu a outra estação, que fica perto de um local estratégico onde ela seria aclamada, assim dizem as probabilidades calculadas, como a Messias.”

Vincent examinou a máquina. “Pelo estado dela, acho que não. Mas como ela conseguiu avariar a máquina assim, e por quê você não a impediu?”

“Eu não havia desperto totalmente do sono. O seu tiro foi o que me consertou todas as memórias, irônico, não é mesmo? Então, eu não sabia no que ela estava mexendo. E se soubesse... teria feito algum movimento que ela interpretaria mal e, quem sabe eu estivesse morto de verdade, quem sabe onde teríamos ido parar. Talvez tudo desse ainda mais errado. E eu não consegui me mexer após o tiro, não até que ela tivesse ido embora de vez.”

“Pela cena que presenciei, ela agora odeia a humanidade e vai desencadear outro apocalipse.”

“Ou pelo menos vai tentar fazer isso. Provável que tenha poder o suficiente agora. Talvez as ações dela, a longo prazo, sejam ainda mais devastadoras do que os efeitos que vá gerar... lá onde ela foi parar.”

“Será que, com um exame mais demorado, não dê para identificar onde ela foi parar e irmos detê-la? Posso acionar outros irmãos na causa e...”

“Esqueça. EU é que tenho memórias de milhares de vidas, milhares de planos, não você, percebe? Já vi que a máquina está irremediavelmente sem conserto, meus conhecimentos vão além dos seus.” Dante sorriu amargo, pôs a mão no ombro de Vincent, que franzia a testa: “Não precisa se ressentir só porque eu sou superior a você. Nós dois somos inferiores a ela, por mais louca que ela seja: então, estamos no mesmo barco.”

“Que é que vamos fazer, então? Dê as ordens.”

“Será um tabuleiro de xadrez entre eu e ela. E eu e você orquestraremos contramedidas e providências para minimizar os efeitos que ela vai causar... por exemplo, teremos de fundar certas famílias; mexer na ordem social devagarinho, criar pelo menos duas religiões novas com minhas informações privilegiadas do passado; soltar no mundo os prisioneiros daquela subespécie humana, os neanderthal, que foi recriada antes da Quarta Guerra Mundial; eliminar esses bandos de 'soldados' itinerantes; recuperar uma série de tecnologias que estão dispersas e latentes pelo planeta... Vamos retomar o plano original depois disso tudo... algum descendente meu vai se ocupar disso, tenho certeza.”

“É claro. E tenho também certeza que haverão muitas mulheres no nosso povo eleito que ficarão satisfeitas de dar-lhe descendentes...” E Vincent, o Vulto, curvou-se diante do novo líder dos anciões do reino subterrâneo de Aggartha, o Grão-Mestre Dante.

***

Muito longe dali, Aury andava por uma paisagem muito diferente da onde havia estado antes, no outro lado do mundo, totalmente certa de que havia retornado ao mundo real, longe daquela simulação imunda, e cheia de ódio contra os humanos.

Dentro de seu ventre, uma minúscula criança humana, filha de Dante, se desenvolvia...







FIM



EPÍLOGO:
por Draven




“Traidor. Na realidade, eu é que fui traído”, pensou Vincent. Por anos pensou estar fazendo o certo, mas ele foi enganado. Sua vida foi uma mentira. Sua missão foi uma mentira.

As ultimas palavras de Aury ecoaram em sua mente: “Você é apenas um fantoche para eles, apagaram tudo o que você conhecia a seu respeito.”


Agora ele estava sozinho, longe de seu novo mestre, cumprindo sua nova missão. Parecia sempre haver uma missão, sempre haver uma tarefa, sempre uma razão para ele viver. Mas nesse momento, ele se questionava o quanto ele fora ele mesmo até o momento.

Seus olhos se enfureceram. Ele continuava sendo um fantoche, e aparentemente continuaria pelo fim de sua curta vida.

Mas ele agora estava mudado. Agora que lembrava seu próprio nome, sabia o que deveria fazer em segredo. Haviam armas em sua frente, haviam compostos químicos para o que ele quisesse, e haviam registros que estavam lhe ensinando mais do que poderia aprender sozinho em uma vida.

Ele havia sido escolhido, não apenas uma, mas duas vezes. Já estava cansado de ser um peão. Já estava cansado de grandes poderes que ele não entendia completamente. Já estava cansado de não escolher seu destino. Mas também estava decidido.

Tocou com a mão o pequeno recipiente com um líquido de cor alienígena, que não poderia existir na natureza. Aquilo seria sua obra prima, sua arma suprema. E quando o tempo chegasse, os dois grandes poderes, “Aury” e “Dante” seriam destruídos.

“A humanidade não precisa de vocês. A humanidade precisa se encontrar por ela mesma. Agora, finalmente, meus olhos podem ver a verdade: que às vezes, a mão do destino precisa ser forçada”.


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